Um avião sem ela


Título original: Un avion sans elle
Autor: Michel Bussi
Nº de páginas: 432
Editora: Bertrand Editora

Sinopse
«1980. Na sequência de um trágico acidente de avião nas montanhas, as equipas de salvamento encontram apenas um sobrevivente: um bebé de três meses. Mas iam dois bebés de três meses no avião, duas meninas, ambas louras, de olhos azuis. Qual delas é a sobrevivente? 
As duas famílias, de meios completamente distintos, disputam violentamente a custódia da menina e cabe a um juiz determinar se ela é Emilie ou Lyse-Rose. Para que se declare uma das meninas viva, a outra tem de ser declarada morta. Numa época anterior aos testes de ADN, ninguém sabe se a decisão tomada está correta. 
Dezoito anos mais tarde, um detetive privado alega ter chegado ao fundo da questão, mas depois é assassinado. Toda a sua pesquisa está registada num caderno que deixa. Um Avião sem Ela é a história de uma investigação para descobrir a verdadeira identidade do bebé sobrevivente e o efeito que esta história trágica teve nos membros da família que continuam a disputá-lo.»

Opinião
Como escolher entre a morte e a vida, quando as duas se aparentam igualmente plausíveis? Numa situação em que uma só pode existir quando a outra for aniquilada, e à falta de factos, a decisão transpõe os patamares da razão. Da sanidade, até. Porque um meio termo é, efectivamente, impossível - uma bomba prestes a explodir perante a mais pequena revelação.

Um avião sem ela divide-se entre esses dois conceitos, na procura de uma explicação para o macabro acontecimento daquela noite de Dezembro, ocorrido nos confins do mundo. No meio dos escombros do que resta de um avião ardente, uma centelha miraculosa pulsa de vida. Contudo, o que em primeiro lugar seria um milagre transforma-se repentinamente num caos vertiginoso - quem será a sobrevivente da tragédia, Lyse-Rose ou Emilie? Depressa se torna evidente que não será fácil desvendar a verdade. Uma criança que não tem poder de ditar o seu destino vê-se cobiçada por dois lados totalmente opostos: os Carville, detentores de uma riqueza colossal, de tudo capazes para levar avante a sua demanda, e os Vitral, uma família humilde, honesta, mas orgulhosa das suas origens. O paradoxo adensa-se à medida que o tempo passa, sem que haja uma meta em vista. Por isso torna-se fundamental a mão de um especialista em mistérios. Um homem que, por dinheiro e paixão à sua profissão, fará o que for preciso para pôr um termo à dúvida.

Esse homem é Crédule Grand-Duc, um detective privado que, a mando dos Carville, incessantemente procura a verdade. Sob uma forma particularmente engenhosa, a voz de Grand-Duc percorre todo o livro e a sua presença é notada em cada capítulo onde, migalha a migalha, se traça o caminho para a grande revelação. Poder-se-ia dizer que a sua intervenção neste caso ocorreu quer como uma esperança miraculosa, quer como um presente envenenado. O facto é que o homem em si é de uma simplicidade mórbida, cuja vida compassada carece de interesse. É então que aparece a oportunidade de vingar na vida e alcançar aquilo com que sempre sonhou. Mas o desfecho da história iria para além de todas as suas expectativas, bem como a mudança que os seus dezoito anos de investigação provocaria no seu interior. E se Grand-Duc está encarregue do caso, o leitor deverá estar comprometido em seguir religiosamente os passos desta personagem, cuja simplicidade aparente esconde mais do que aquilo que se vê.

Porém, é de Lylie que trata o mistério. O facto de estar viva é, só por si, uma benção. Contudo, ao ser uma dádiva para os Vitral, é uma maldição para os Carville. Enquanto a verdade não for esclarecida, Lylie nunca poderá ser nem Lyse-Rose nem Emilie, antes um híbrido semiconsciente no limbo da existência, um sol que não nasce nem se põe, uma libélula cujas asas não podem levantar voo. Transparece, assim, através de Lylie, a importância da identidade, de se ser alguém no mundo com um sentimento de pertença e de propósito. Existir não chega, não nesta vida. Quem somos é o bem mais precioso que possuímos. Só assim nos podemos entregar completamente a algo ou alguém, dando tudo o que somos e que temos. Lylie sente-se na obscuridade com essa falta. Um vácuo na alma, um vazio por preencher há dezoito anos. Apesar de todo o esplendor que rodeia a sua figura, uma jovem esbelta e fulgurante, requintada mas humilde, essa ignorância é a sua maior vulnerabilidade. Marc, o seu companheiro e, quiçá, irmão, partilha dessa dor. A cumplicidade entre os dois é forte, um laço que ultrapassa uma mera relação de amizade. Uma pessoa não diz ao sol que se apague. Na verdade, este é um aspecto fulcral para o desenvolvimento da trama: poderá um amor tão profundo existir no seio da dúvida? Marc é um rapaz humilde, tal como Lylie, mas determinado e orgulhoso, o que lhe permite empreender a demanda que o aguarda. Tal como Marc, também o leitor se põe no papel de questionar os eventos e os factos, tentando de algum modo chegar a uma conclusão que se aparenta cada vez mais difícil de atingir. As dores não se somavam, antes se sobrepunham, o que era uma grande sorte.

Outra personagem de destaque é Matilde de Carville, hipotética avó de Lylie, uma mulher obstinada e crente em todo o seu ser. O seu fanatismo leva-a por caminhos obscuros, em que por vezes a frieza e a brutalidade que lhe são associadas conduz à tomada de decisões inesperadas, cruéis e irreparáveis. Ainda assim, é tudo feito em nome de uma causa, através de uma obsessão cega e intocável. O poder da crença é, deveras, forte e consegue mover o mundo, se bem que, em certas ocasiões, na direcção errada. As provas que a religião exige reforçam a fé em vez de a comprometerem.

Michel Bussi apreende as suas personagens num enredo extremamente cativante, empolgante, num estilo de leitura simples e célere. A sua narração omnipresente, através da qual conseguimos obter a ilusão de captar a cada momento todas as emoções das personagens, é um excelente mecanismo para captar a atenção e criar uma maior intimidade com o leitor. Bussi estabelece-se assim como um contador de histórias nato, nunca omitindo a beleza e a metáfora que um romance deve conter. Além disso, a manutenção do suspense ao longo da obra é da maior importância nesta história. A tensão é grande, pois a qualquer momento a chave poderá vir ao de cima.

Nestas páginas, em que mistério e surpresa são as palavras de ordem, Bussi elaborou um magnífico livro capaz de agradar ao mais vasto leque de leitores. Um avião sem ela é um relato multifacetado sobre o valor da vida, das pessoas, da verdade enquanto conceito fundamental e do amor enquanto princípio máximo. Uma viagem na qual vale a pena embarcar.

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