Título original: Hamnet
Autora: Maggie O'Farrell
Nº de páginas: 320
Editora: Relógio D'Água
Sinopse
«Hamnet é um romance sobre o filho de Shakespeare. Mas esse é apenas o ponto de partida para Maggie O’Farrell construir uma obra actual, que interroga a origem da dor e envereda por caminhos menos conhecidos do amor e da maternidade.
Numa narrativa que mistura realidade e ficção, a autora irlandesa cria uma das mais importantes obras literárias deste início do século XXI.»
Opinião
A célebre frase imortalizada por Shakespeare na sua obra-prima contém em si o infinito. O paradoxo da existência e do seu contrário é um enigma que persiste no tempo, transversal a todos os domínios da humanidade. Já a inspiração para Hamlet e a sua reflexão perante a figura da morte é, também ela, um mistério. Se por um lado é notória a semelhança lexical entre Hamlet e Amleth, a figura da lenda escandinava que se acredita emprestar o seu nome e a sua história, a verdade é que a vida de Shakespeare era habitada por outro seu homónimo, Hamnet, o seu filho. Sendo Hamlet e Hamnet intercambiáveis, é plausível assumir qual a real identidade do príncipe dinamarquês que se tornou um herói. O aspecto deveras intrigante nesta escolha prende-se com o seu porquê e, nesse sentido, O'Farrell propõe-se a um esclarecimento.
Este não é, de todo, um livro sobre Shakespeare, cuja referência é propositadamente omissa. A sua presença paira como uma névoa atravessada por outras formas mais nítidas, o que confere um olhar fresco e cativante do homem em detrimento do dramaturgo. Desde os tempos de criança abastada, passando pelo jovem poeta apaixonado e culminando no esposo e pai distante, inúmeras caras sobressaem pelo caminho em irreverência e magnitude. A mais distinta é a sua mulher Agnes, comummente conhecida por Anne, tanto pela força como pela singularidade do seu carácter. Também ela com raízes rurais, Agnes exibe uma poderosa conexão com a natureza, extraindo dela conhecimento e ferramentas essenciais para o seu labor de curandeira. É, contudo, o lado oculto e transcendente do mundo que mais se gruda ao seu ser, revelando o que é invisível aos que a rodeiam. Nesta espécie de realismo mágico, a obra adquire um tom místico fascinante, engrandecendo Agnes como a semente de onde brota a narrativa. Parte desta identidade é transmitida, pois, a Hamnet, preenchido de vitalidade, inocência e perspicácia. Juntamente com Judith, sua gémea, e Susanna, sua irmã mais velha, perfazem o legado do casal inusitado que constrói, na medida do seu humilde saber, uma família alicerçada em afecto.
Porém, se é com encanto que se constrói a secção inicial do livro, já a final é pautada pela sua ausência. O não ser vence o ser, neste jogo de contrários que, por fim, toma um dos partidos. A luz desvanece perante a perda, instalando-se um vazio que, cumulativamente, se preenche de dúvida, ira e mágoa. Conclui-se que o real intuito sempre foi escrever sobre o luto de uma perspectiva feminina, analisá-la nas múltiplas frentes, aqui com a primazia da lente singular de Agnes. É curioso constatar que, sendo, na sua estética, o tributo de um pai a um filho, a obra subverte-se ao ponto de se tornar, em essência, um grito consumptivo de amor materno.
O'Farrell manipula as palavras com sabedoria e delicadeza, de onde resulta uma peça lírica de extraordinária beleza. A irrepreensível atenção ao detalhe, bem como o discurso vibrante e vívido, munem a prosa de tamanha energia que é inevitável a rendição ao seu feitiço. Numa diligente permuta entre passado e presente que aos poucos ergue o véu da verdade, instala-se uma atmosfera que instintivamente enlaça o leitor num tempo e num lugar que, embora transcendentes, se sentem tão perto.
Nesta que é uma biografia matizada pela fábula, Hamnet percorre os bastidores da vida de um génio para dar voz aos que habitam no silêncio. Por meio de personagens riquíssimas e uma narrativa deslumbrante, O'Farrell atinge o âmago da condição humana com emoções que pulsam das palavras. Uma obra-prima tão devastadora quanto bela sobre a pluralidade do sofrimento que merece todos os aplausos. Recorda-te de mim, implora Shakespeare. E assim será.
Comentários
Enviar um comentário