Crime e Castigo


Título original: Преступление и наказание
Autor: Fiódor Dostoiévski
Nº de páginas: 520
Editora: Editorial Presença

Sinopse
«Datado de 1866, Crime e Castigo é o primeiro dos grandes romances que Dostoiévski escreveu - já em plena maturidade literária - e, provavelmente, a mais bem conhecida de todas as suas obras. Recriando um estranho mundo em torno da figura do estudante Raskólnikov, atormentado pelas privações e duras condições de vida, este é por excelência um dos livros fundadores da modernidade literária. Pelo inexcedível alcance e profundidade psicológica, sobretudo no que respeita às motivações não conscientes e à aparente irracionalidade dos comportamentos das personagens, Dostoiévski tornou-se uma referência universal na literatura.»

Opinião
Compreender o funcionamento da mente é talvez a nossa tarefa mais difícil enquanto humanidade. As razões que nos conduzem a determinadas decisões e a certos comportamentos que nos permitimos praticar nem sempre são as mais óbvias e, por conseguinte, são questionadas. É um facto que as nossas mentes, enquanto atributos individuais, funcionam de forma distinta e nisso não existe qualquer anormalidade porque há, mais ou menos, uma base perceptível por todos. Quando é que ocorre então o absurdo, isto é, a perpetuação de uma acção visivelmente fora dos limites da compreensão comum? Mais importante, como se justifica o autor dessa acção dita anormal perante os demais?

Crime e Castigo expõe um desses casos partindo de um protagonista invulgar e dos seus ideais igualmente invulgares. Rodion Románitch Raskólnikov é um jovem decrépito que, por viver na pobreza, abandonou os seus estudos na universidade. Dedicando-se exclusivamente às suas reflexões num quadro de solidão, Raskólnikov encontra-se num impasse existencial que urge resolução. Impelido por um misto de necessidade e predestinação, empreende assertivamente a sua obra. Contudo, daí resultam gradualmente incertezas e o abalo de crenças anteriormente firmes. Gera-se em Raslkólnikov uma sólida angústia que espelha a questão essencial: esteve ou não esteve no seu pleno direito ao agir como agiu?

Esta obra de Dostoiévski foi, para mim, uma leitura difícil, maioritariamente devido à personagem principal. Raskólnikov não é alguém afável ou convidativo, manifestando uma grave perturbação de espírito de carácter volátil e explosivo. Além disso, o seu acto e todas as questões morais que implica não permitiram uma ligação instantânea a esta personagem e, por conseguinte, à narrativa. Desde os primeiros momentos que é evidente a atipia inerente a Raskólnikov, mas com a progressão da obra a sua instabilidade e incoerência não desaparecem. Instala-se, portanto, uma séria dicotomia no modo de percepcionar esta figura: tomamo-lo por um idealista em construção ou simplesmente por um louco? A simples existência sempre fora insuficiente para ele; queria sempre mais. Era talvez só pela força dos seus desejos que então se considerava um homem a quem era permitido mais do que a qualquer outro.

Sendo, deste modo, um livro exigente, a verdade é que o esforço do leitor é recompensado. Dostoiévski é um autor de ideias complexas, porém essenciais. Não se exprime da forma mais imediata, convidando à interrogação e construindo uma forma de pensar que é gradualmente incutida. O seu foco são sobretudo as virtudes e os defeitos humanos em toda a sua substância. Abordando as suas personagens sob um ponto de vista altamente psicológico, desvenda o seu íntimo com naturalidade e crueza impressionantes, oferecendo pois um panorama completo das suas crenças, receios e desejos. 

Algo que me surpreendeu foi o facto de a narrativa, decorrendo algures na Rússia czarista, recair num cenário de decadência e miséria notórias. Crime e Castigo mostra a São Petersburgo das vielas sombrias, dor ar sujo e bafiento, dos apartamentos que são cubículos claustrofóbicos onde a esperança de um dia melhor se desvanece. Por conseguinte, o conjunto de personagens que se move neste ambiente é igualmente sorumbático e detentor de severos problemas sociais e económicos. Apesar disso, a vida existe com luta pela dignidade apoiada em sinceros laços de amizade.

Com vários momentos de grande intensidade e reviravoltas arrebatadoras, Dostoiévski elabora uma sequência de acontecimentos que agarra o leitor. Com uma narração exímia, porém longe da simplicidade, nem sempre a leitura flui ao mesmo ritmo, maioritariamente nos períodos de teorização filosófica. Importa, no entanto, perceber que é constante a presença de conteúdo que o autor dispõe a quem se entrega à interpretação esta obra.

Como um livro invulgar e complexo, Crime e Castigo pode, portanto, constituir um desafio ao mais eclético dos leitores. Através da personagem central questionam-se os aspectos fulcrais do comportamento humano numa situação de extrema convicção ideológica. A dúvida instala-se: quem tem afinal direito a praticar os seus desígnios mesmo que tal implique um sacrifício alheio? Felizmente, a fronteira entre o certo e o errado tem a sua conduta. Alguns apenas precisam de mais tempo para a destrinçar.

Comentários

  1. O maior escritor de todos! Recomendo continuar pelo olhar dostoievskiano com "Os Irmãos Karamazov", "O Idiota" e "Demónios". É viciante como Dan Brown nunca conseguiu ser.

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    1. "Os Irmãos Karamazov" já está na estante a aguardar!
      Dan Brown tem a sua fórmula de sucesso, mas certamente não é comparável em termos de profundidade e análise humana como Dostoievski. Estão em campeonatos muito diferentes!
      Obrigado pelo comentário!

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