Viagens


Título original: Bieguni
Autora: Olga Tokarczuk
Nº de páginas: 352
Editora: 20|20 Editora
Chancela: Cavalo de Ferro

Sinopse
«O coração de Chopin é secretamente levado de volta para Varsóvia pela sua irmã; uma mulher vê-se obrigada a regressar à Polónia para envenenar o seu primeiro amor, moribundo numa cama; um homem começa a enlouquecer quando a mulher e o filho desaparecem misteriosamente, apenas para, do mesmo modo, reaparecerem subitamente - através destas e outras histórias e personagens, brilhantemente relatadas ou simplesmente imaginadas, Viagens explora, ao longo dos séculos, o significado de se ser um viajante, um corpo em movimento, não apenas através do espaço, mas também do tempo.
De onde provimos? Para onde vamos ou regressamos?
Fascinante, intrigante e de uma originalidade rara, este livro é uma resposta sublime a todas estas questões, uma teia de reflexões que entretece ficção, memória e ciência. Uma exploração profunda sobre o corpo humano, a vida que surge, a morte e o movimento, levando-nos ao âmago do próprio significado de humanidade.»

Opinião
O título original deste livro, Bieguni, remete para a designação de uma seita ortodoxa que considerava o movimento como algo sagrado já que, dado o seu carácter dinâmico e inconstante, impedia a fixação de qualquer mal ou vício. Curiosamente, este esclarecimento é apresentado numa fase já avançada da leitura, momento em que a pertinência desta escolha é justificada após várias passagens de páginas que deixam uma sensação de estranheza.

Como um diário de bordo onde a cada itinerário se regista uma nova entrada, Viagens exibe um percurso indefinido e imprevisível no espaço e no tempo, num registo que se agita entre o autobiográfico e o ficcional. A formulação narrativa deliberadamente fragmentada individualiza cada momento na sua unicidade, porém pertencendo ao conjunto ainda que esta relação não seja clara. Este fenómeno desampara o leitor perante a sua incongruência, para o qual também contribuem os retalhos de mapas espalhados anarquicamente como provas de aventuras cumpridas ou, quem sabe, por cumprir. Qual, então, o significado de tudo isto?

Talvez existam várias interpretações do papel da viagem. A necessidade de chegar a algum lado, de percorrer caminhos distintos, de partir de um ponto que já não faz qualquer sentido ou até de caminhar por caminhar sempre se afrontou às espécies deste planeta. De uma maneira ou de outra, viajar é uma exigência visceral em qualquer forma de existência. Por vezes, o trilho é perfeitamente inteligível. Ir. Chegar. Quiçá, voltar? Por outras, é o caos - o que, contudo, não implica que nele não se consiga apurar alguma ordem.

A multiplicidade das vozes aqui expostas elucida esse mesmo facto. Contextos e pretextos diferentes são propulsionados por uma mesma força. Frente a frente com a oportunidade de movimento, a decisão é naturalmente a de aceitar o desafio. Porém, por mais tortuosas que se revelem as voltas, é no próprio acto de viajar que encontram a resposta. Pois é aí que acontece a transformação. E transformar é imprescindível para poder ser.

Importa também ressalvar que a viagem evolui a dois níveis: o físico e o metafísico. A realidade face à imaginação. O corpo face à mente. A psicologia alia-se à fisiologia com a lucidez de que ambas são fundamentais. A dualidade deve, assim, ser demarcada, porém permanecer íntegra num equilíbrio inviolável. Sublinha-se uma óbvia obsessão pela anatomia, que quase de forma violenta enaltece o poder da estrutura humana, deslumbrante e grotesca em igual medida. Com algum exagero, relembra que a origem do movimento é orgânica. Somos feitos de matéria que se move desde o primeiro ao último suspiro, para depois, inquieta, recomeçar o seu ciclo. Para quê, pois, contrariar algo que é tão simples, espontâneo e incontornável?

Um aspecto bastante positivo é o aperfeiçoamento da qualidade estilística ao longo da leitura, que cresce em beleza e vivacidade. A escrita, por sua vez, adequa-se consoante o tipo de narração, cingindo-se à mera enumeração factual ou, em alternativa, apoiada numa complexa introspecção. Algumas passagens não encaixam no quadro geral e, por essa razão, são pontos de quebra que soltam rastos de dúvidas. Estes, na verdade, acabam por não ter resolução, terminando com qualquer expectativa nessa indeterminação. A história do peregrino, como tantas vezes é nomeado aquele que se arrisca na demanda, seria sem dúvida recompensada com maior dose de concretismo.

Viagens é, com toda a sua particularidade, um livro atípico em forma e conteúdo que conquista com certa dificuldade. Independentemente da receptividade de cada um, o facto é que se trata de um exercício pessoal surpreendente e irreverente que transparece a harmonia do todo em permanente mutação e renovação.

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