Coração Negro


Título original: Uprooted
Autora: Naomi Novik
Nº de páginas: 432
Editora: Saída de Emergência
Colecção: Bang!

Sinopse
«Agnieszka adora a sua pacata aldeia no vale, as florestas e o rio cintilante. Mas o maléfico Bosque permanece na fronteira e a sua sombra ameaçadora paira sobre a vida da jovem.O povo depende do feiticeiro conhecido apenas por Dragão para manter os poderes de Bosque afastados. Mas o Dragão exige um terrível preço pela sua ajuda: uma jovem deve servi-lo durante dez anos, um destino quase tão terrível como perecer a Bosque.
A próxima escolha aproxima-se e Agnieszka tem medo. Todos sabem que o Dragão irá levar a bela, graciosa e corajosa Kasia, tudo aquilo que Agnieszka não é, e a sua melhor amiga no mundo. E não há forma de a salvar. Mas Agnieszka teme as coisas erradas. Porque quando o Dragão chega, a sua escolha surpreende todos...»

Opinião
Agnieszka leva uma singela existência num vale às portas de uma floresta por onde flui um rio resplandecente. Poderia ser um cenário idílico, não fosse a ameaçadora proximidade ao Bosque. Desde cedo que os habitantes da sua aldeia aprenderam a temê-lo e a evitar tudo o que daí provém. O medo e o terror são permanentes, com a parca esperança recaindo no poder de um mago que combate o avanço das sombras. Porém, tudo tem um preço. Desta vez, poderá ser Agnieszka a descobrir que conter a malícia do Bosque acarreta um custo demasiado elevado.

Narrado na voz de Agnieszka, o livro sustenta-se nesta personagem central para desenvolver a trama. Inicialmente como uma rapariga simples e ingénua que desfruta da sua felicidade, depressa os acontecimentos permitem uma evolução gradual da protagonista que adquire maior complexidade e maturidade. Agnieszka cresce ininterruptamente, com os seus primeiros e últimos momentos contrastando abismalmente, prova da sua força, inteligência e sagacidade. Na verdade, o facto de aceitar o seu destino num estoicismo perentório, mesmo sabendo previamente que tal exige dela mudar quem é, revela a sua verdadeira natureza: uma combinação harmoniosa de coragem e magnanimidade. Já o Dragão, a segunda personagem com maior relevância, apresenta-se por camadas que se introduzem uma após a outra, quando pertinente. Místico e obscuro, remete-se à sua torre e ao estudo da sua magia como um enigma difícil de decifrar. É Agnieszka que, através das suas qualidades invulgares e aliciantes, quebra o gelo exterior, observando para lá da opacidade que o cobre como uma máscara. A dinâmica que se erige entre ambos é agradável e bastante enriquecedora. Gostaria, contudo, de ter assistido a uma exploração mais profunda do Dragão que evidenciasse todo o potencial que este demonstra ter.

A magia, como base de construção da narrativa, é, na minha opinião, o aspecto menos bem conseguido. Com uma premissa robusta, esta vertente poderia ter realizado muito mais. Apesar de ser uma presença em todos os campos da trama, é delineada de modo superficial, carecendo de maior definição. São reunidos vários elementos importantes que, ainda assim, teriam maior impacto com maior cuidado na sua elaboração. A certo ponto, fica a sensação de que a autora não soube que direcção tomar, acabando por abarcar múltiplos caminhos que culminam num conjunto que, apesar de funcional, sobressai pela sua estranheza. 

Por oposição, o grande feito do livro é a sua consistência. O ritmo é constante, conseguido através de uma onda sucessiva de acontecimentos sem pausas que agarra o leitor. O percurso da narrativa foi bem escolhido, planeado com lógica e precisão. A qualidade da prosa é significativa, adequada ao público-alvo mais juvenil.

Gostei particularmente da personificação do Bosque como o vilão. Omnipresente em toda a extensão da história, paira como uma sombra inquietante que não dá tréguas e que força à acção. O maior mistério recai nesta entidade. Os terríveis actos que executa são devidos a simples perfídia ou estão ligados a motivos ocultos? Quem é seu aliado? Qual a sua verdadeira origem? O desconhecimento é mantido até ao fim com habilidade, garantindo o interesse capítulo após capítulo.

A derradeira revelação é, porém, inesperada mas eficaz. Novik optou por uma resolução em tom poético repleta de significado, constituindo o momento de maior importância onde finalmente a compreensão é alcançada. Destaca-se a ideia de que temer o desconhecido é, na maioria das vezes, um erro de pura ignorância. É, talvez, aquilo que se conhece que guarda os maiores perigos.

Por fim, Coração Negro reserva em si uma boa história, contada com beleza e firmeza. Quase como um conto de fadas pintado em tons de negro, a luz declara-se na forma de uma jovem que detém um poder maior do que imagina. Esta é uma leitura encantadora que, por certo, deliciará quem procura abstrair-se num universo de feiticeiros, magia e criaturas estranhas, mas por onde implicitamente se imiscui a condição humana.

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