A Nossa Parte da Noite


Título original: Nuestra parte de noche
Autora: Mariana Enriquez
Nº de páginas: 608
Editora: Quetzal Editores

Sinopse
«A Nossa Parte da Noite, o aguardado livro da argentina Mariana Enriquez, é um romance épico, gótico, múltiplo, uma mescla de géneros e tradições literárias e onde as personagens atravessam mundos e submundos. Os temas universais da família, do poder e da eternidade cruzam-se com os de sociedades secretas e seres obscuros que procuram redefinir a natureza da vida e da morte - o terror sobrenatural entrecruza-se com terrores muito reais. Em tempos de ditadura militar, um pai e um filho atravessam a Argentina de carro, desde Buenos Aires até às cataratas de Iguaçu. Pelo caminho há operações de controlo militar e o clima geral é de grande tensão. O pai tenta proteger o filho, Gaspar, de um destino que parece estar traçado. A mãe morreu em circunstâncias pouco claras. Tal como o pai, Gaspar foi chamado a ser médium numa sociedade secreta, A Ordem — já com séculos de existência —, dominada pela poderosa família da mãe de Gaspar. O destino do médium é cruel, pois o seu desgaste físico e mental é rápido e implacável.
Desta inicial viagem de carro partimos para uma outra viagem alucinante - com passadiços que escondem monstros inimagináveis; interiores de casas que comportam abismos e mudam subitamente sem a intervenção humana; com enigmáticas liturgias sexuais; andanças pela Londres psicadélica dos anos sessenta; a ditadura militar, os desaparecidos; e a incerta chegada da democracia.
Considerado pelo júri do Prémio Herralde «o novo «grande romance latino-americano», na senda de Rayuela, Paradiso, Cem Anos de Solidão ou 2666, A Nossa Parte de Noite é um romance total e deslumbrante que consagra Mariana Enriquez como uma escritora fundamental das letras latino-americanas do século XXI.»

Opinião
Juan e Gaspar empreendem uma viagem incógnita. Tacteia-se a urgência em prosseguir, em fugir de um perigo que não permite distância. Entre barreiras emocionais e segredos viscerais, o prelúdio deste romance garante que o desconhecido e a especulação serão regra. Percorrendo uma Argentina fulminada pela ditadura peronista, onde o fosso entre precariedade e abundância é gritante, a ameaça política e militar é o último dos problemas no seio de uma família, em si, problemática - que, ironicamente, repousa no pólo favorecido da sociedade. Na verdade, desta viagem alimenta-se uma certeza: há algo que lateja debilmente, quase imperceptível, uma sombra que se fortalece e que teima em revelar-se.

A Nossa Parte da Noite lança-se, discretamente, através das perspectivas de um Juan adulto e de um Gaspar criança, apurando uma relação tumultuosa entre pai e filho. Juan, de imediato, apresenta-se como um vidro opaco: rígido e de difícil percepção. As feridas do passado transmitem dor, mas também resiliência e uma ferocidade implacável para cumprir os seus desejos. Com magnetismo e uma aura de mistério, Juan divide-se entre a amistosidade e a crueldade, num desequilíbrio fruto de circunstâncias que são paulatinamente enunciadas. Por outro lado, Gaspar é um aglomerado de inocência e incompreensão, não por isso desprovido de sofrimento. É como se subíssemos juntos uma escada e a dada altura eu dissesse «eu fico aqui». E no degrau deles, mais acima, eles são felizes e eu fico a olhar para eles. Teria sido sempre assim? A sua presença é a mais relevante em praticamente toda a obra, constituindo o motivo das acções no presente, bem como a personificação da chave do futuro. Acompanha-se o seu crescimento a par de Vicky, Pablo e Adela, os seus amigos que imprimem vitalidade e frescura, necessárias numa obra declaradamente sombria. Outras personagens integram a trama com a respectiva pertinência, tal como Rosario, a mãe de Gaspar, embora brilhem menos na sua individualidade.

A narrativa explana-se em linhas temporais e espaciais fracturadas, com avanços e retrocessos que esclarecem apenas o essencial. É, pois, uma verdadeira estrada serpenteante numa cronologia de encruzilhadas impossíveis e inesperadas, porém conectadas habilmente para, no fim, formar um caminho coeso e único. Enriquez domina esta gestão de ocasião, atingindo o leitor precisamente quando a curiosidade cresce, impelindo-o nessa incerteza sem concretizar ou prometer demasiado. De facto, é a dimensão humana que contribui para a grande densidade deste livro, em detrimento da relativa escassez dos seus acontecimentos.

Porém, o ponto mais substancial é, indiscutivelmente, a atmosfera densa e sombria que acompanha toda a acção. Carregada de símbolos e elementos visualmente negros, góticos e grotescos, atinge-se uma sensação opressiva, de certa forma repugnante, mas sempre fascinante. O conceito da morte é transversal e central, de tal maneira que amiúde se perde a fronteira com a vida, secundária e banal no cenário traçado - aqui importante o paralelismo com a brutalidade da ditadura. Há, além disso, uma forte representação do oculto, de seitas e rituais, de tribalismo e forças primitivas, de lendas e mitos enraizados, atraindo o enredo para o domínio do transcendente com o seu inerente carácter abstracto. O horror e o deslumbramento confundem-se numa emoção intensa e surreal, uma experiência que, por si, dignifica esta história como única e irrepetível.

Enriquez consegue ainda, nesta obra repleta de personagens, prodigiosamente demarcar a solidão patente em cada uma delas, como se a sua interacção não fosse um objectivo, mas sim um acaso fortuito do destino que une pequenos mundos com pontos em comum. Por outro lado, a ambição e a vingança regem uns e outros, estabelecendo terreno para confrontos à margem de uma volátil dinâmica familiar.

Na expectativa de uma conclusão retumbante, é com alguma perplexidade que esta se desvenda simples e precipitada, ainda assim com o resultado adequado. O percurso foi delineado tendo em conta esse momento derradeiro, que, finalmente alcançado, exprime uma melancolia imprevista ao invés de uma sensação de êxito. Como sempre acontece, as marcas do passado sangram eternamente na memória. 

A Nossa Parte da Noite é, na realidade, uma narrativa agridoce, assinalada pelas adversidades mas também pelos pequenos triunfos da vida. Distingue-se na envolvência obscura, nas personagens intensas e no estilo inconfundível que cintila livremente entre as páginas. Enriquez foi uma estrondosa revelação que, espero, ainda tenha muitas cartas para lançar nesta arte de contar histórias.

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