Autor: João Cerqueira
Nº de páginas: 190
Editora: Estação Imaginária
Sinopse
«Cristo regressa à Terra. Depois de conhecer a activista Madalena que luta por um mundo melhor, ver-se-á envolvido em três situações de conflito. Em São Martinho da Horta conhece o grupo ecologista radical -Verdes são os campos, que pretende destruir uma plantação de milho que supõe geneticamente modificada. Depois, em Vilar de Mochos, assiste à revolta dos habitantes contra um empreendimento turístico que vai ser construído numa reserva florestal. Por fim, no bairro da Europa, testemunha o conflito armado entre negros e ciganos. Neste périplo irá conhecer vários personagens: os referidos ecologistas, um padre que o obriga a confessar-se, um autarca corrupto, empreiteiros sem escrúpulos, um Comandante da GNR obrigado a fazer de Pilatos, os habitantes de um bairro degradado, um bruxo, e um negro e uma cigana apaixonados. Porém, conquanto se limite a acompanhar Madalena, tentando apenas pacificar os desavindos, nem assim Cristo volta a escapar à fúria dos homens. E apenas um farsante o irá reconhecer. Mediante a ironia e o sarcasmo a Segunda Vinda de Cristo à Terra aborda fenómenos de conflitualidade social e política que ocorreram no nosso país. Mas no fim é Portugal quem acaba posto na cruz.»
Opinião
Quem não ouviu já os seus prudentes avós e gente com experiência de uma vida já longa exclamar "Ai se os antigos cá viessem!" ou "No meu tempo não era nada assim!" ou ainda "Deus nos valha que o mundo está perdido!"? João Cerqueira concretiza essa aclamada sabedoria popular com o protagonista mais indicado para tal efeito. Jesus, o mártir da humanidade, o Messias que trará paz ao reino dos homens, regressa então à Terra, mais concretamente à pátria de Afonso Henriques, para dois milénios depois, numa fábula repleta de humor e pungência, averiguar se valeu a pena dar a outra face.
Porém, será na companhia de
Madalena que a sua voz será mais forte desta vez. Madalena, que também ela
regressou, agora no papel de uma mulher muito mais activa e, porque não,
espevitada, consciente de que existe um vazio no mundo que ela poderá preencher
se, ao invés do silêncio ou, por antítese, a violência, utilizar um meio termo
para efectuar a mudança – a palavra.
É neste caricato retrato que
surge um conjunto de personagens e de situações já familiares, contudo sob uma
perspectiva totalmente “moderna”. Desde discípulos que proclamam versículos
bíblicos à reencarnação de protagonistas Shakesperianos, a trama percorre
inúmeras referências religiosas e culturais da história humana para
contextualizar essa mesma humanidade na sociedade actual. O resultado é que,
inevitavelmente, nos vemos confrontados a comparar épocas, mentalidades, modos
de agir e de resolver problemas globais, para no fim compreender que, embora a
evolução seja uma realidade a níveis físicos e tecnológicos, é uma fábula na
razão e no coração dos homens. As transformações sociais ocorrem lentas, mas de
forma cíclica e viciosa, em que o auge da monotonia e da insatisfação
generalizada podem facilmente desencadear no espírito ambicioso e instável do
homem o pretexto para uma nova revolução, uma nova guerra e, em certos casos,
um conflito de proporções colossais que derruba tanto crenças como civilizações.
É, portanto, uma missão complicada que Jesus enfrenta, quase como um déjà-vu
que pode, no entanto, agora ser registado com toda a diversidade de gadgets e colocado online para que as pessoas entendam, de uma vez por todas, como é
importante fazer valer os sacrifícios da História que são facilmente
esquecidos. O homem nasce mau ou é a
sociedade que assim o torna?
Quanto à obra em si, penso que
João Cerqueira construiu um pequeno-grande livro. Pequeno pois basta olhar para
as poucas páginas que o compõem e depreender que esta é uma leitura leve – se
bem que apenas no sentido literal da palavra. Grande devido ao seu conteúdo
cheio, complexo e reflexivo, que contempla as questões éticas e morais
fundamentais da sociedade em qualquer época. Com efeito, essa densidade é o
motivo pela qual a leitura se pode tornar morosa, mas nunca monótona.
O estilo provocatório com que a
trama é apresentada, evocando um humor por vezes sádico mas necessário, é a
chave para subjugar o leitor e incitá-lo nas suas reflexões. Atingindo
ocasionalmente o ridículo e o inverosímil, recorrendo à metáfora como
intermediária, facilmente o leitor se surpreende numa perplexidade chocante,
embora cheia de verdade. João Cerqueira denota, assim, o seu talento com a
ironia e o sarcasmo para ressalvar o seu sentimento crítico aguçado relativo a
este nosso mundo que se encontra corrompido por todo o tipo de interesses.
A estrutura da narrativa foi uma
aposta interessante, encontrando-se esta dividida em três partes distintas.
Para além de cada parte voltar a reforçar a ideia da constância da humanidade
no espaço e no tempo, remete para o simbolismo tripartido da vida. Nascimento,
vida e morte. Um ciclo contínuo, em que princípio e fim se confundem por serem
tão semelhantes nas suas frágeis circunstâncias. Importa, desta forma, a
própria vida. Vivê-la e fazê-la valer nas suas virtudes.
Por fim, fica a noção de que a
missão, mais uma vez, foi frustrada pelo próprio homem cuja inépcia para
aprender o que é mais básico, contudo mais importante, o torna incapaz de ver
claramente a realidade que o envolve. Num relato acutilante, inteligente e
profundo, João Cerqueira fez com que A
segunda vinda de Cristo à Terra seja mais um lembrete do significado da
vida e das suas possibilidades tanto espirituais como terrenas, num jeito de
filosofia humorística entre o Céu e a Terra. Altamente recomendado.
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