Abelhas cinzentas


Título original: Серые пчелы
Autor: Andrei Kurkov
Nº de páginas: 372
Editora: Porto Editora

Sinopse
«Ucrânia, região do Donbass, 2017
Pequena Starhorodivka é uma aldeia de apenas três ruas em plena Zona Cinzenta ucraniana, a terra de ninguém entre as forças nacionalistas e separatistas. Devido à violência constante de uma guerra que se arrasta há anos, todos os habitantes abandonaram a aldeia, menos dois: Sergey Sergeyich e Pashka, dois animigos de infância. Juntos, encontram formas de sobreviver, no meio de constantes bombardeamentos que não se sabe bem de onde provêm ou quais os seus alvos. Naquela aldeia, o conflito perdera há muito qualquer tipo de sentido.
Sem eletricidade há meses, e com pouquíssima comida, Sergeyich tem um único prazer na vida: as suas abelhas. Com a chegada da primavera, o apicultor sabe que terá de as transportar para longe da Zona Cinzenta, onde elas poderão recolher o pólen em paz. Esta simples missão leva-o a conhecer combatentes e cidadãos dos dois lados da frente de batalha: nacionalistas, separatistas, ocupantes russos e tártaros da Crimeia. Para onde quer que vá, a inocência e simplicidade de Sergeyich, a par da sua moral irrepreensível, desarmam todos aqueles que encontra pelo caminho.
Em Abelhas cinzentas, Andrei Kurkov traça, fazendo uso do seu humor desconcertante, um assombroso retrato da terrível situação que o seu país atravessa, mostrando-nos que, mesmo nos contextos mais improváveis, e por vezes da forma mais absurda, a vida encontra forma de seguir o seu rumo.»

Opinião
Avancei para este livro com o objectivo de encontrar um espelho singular do conflito que, subitamente, tomou o mundo de assombro. Perante o mediatismo global, mais do que a realidade social e política, há sempre uma verdade que falta mostrar: as vozes anónimas, por vezes ignoradas, por outras esquecidas. Embora seja uma história anexa à ficção, este relato ilustra a transformação factual em que tantos cidadãos mergulham face a um conflito que expropria a própria identidade. Publicado quatro anos antes da derradeira invasão russa à Ucrânia, em jeito de premonição, Kurkov presenteia com assertividade as consequências do fanatismo nas vidas dos que se negam à rendição.

Abelhas cinzentas acompanha a existência pacata de Sergeyich, um ex-inspector mineiro de meia-idade que, face às maleitas infligidas pela profissão, se dedica exclusivamente à prática da apicultura. Na sua aldeia posicionada em plena Zona Cinzenta, expectadora de inúmeros ataques de artilharia entre as duas facções, Sergeyich cria a sua rotina em torno dos pequenos insectos, privilegiando-os acima de tudo o resto. Na aldeia inóspita, além de Sergeyich, permaneceu também Pashka, que embora apenas a uma rua de distância, encontra-se a léguas de uma potencial amizade. A sua interacção resume-se à ocasional troca de cumprimentos e alimentos assim exigida pela necessidade mútua. Nesta inércia resoluta, certos acontecimentos agitam-na, atingindo-se o ponto incontornável em que cada um terá que escolher o lado a que pertence.

A narrativa fratura-se no momento em que Sergeyich se compromete a cumprir a missão de salvar as suas abelhas. Se até aí uma quietude familiar regia os seus dias, é na viagem assim empreendida que as partes incógnitas de si mesmo emergem. Mais que nunca, o desconhecido empresta ânimo à solidão, que se revela a protagonista desta obra. Porém, Kurkov compreende-a, conseguindo habilmente povoar o vazio e torná-lo vivo como a natureza. Da sua pequena aldeia à Crimeia, Sergeyich e as suas abelhas assistem a um desfile provido de caos e beleza numa viagem repleta de oportunidades para recomeçar. Inconscientemente aprisionado na indecisão, Sergeyich expõe reflexões simples, porém essenciais na sua sinceridade, de modo que o derradeiro caminho se manifesta com a clareza expectável.    

É, portanto, num discurso genuíno e sem artifícios que Kurkov sustenta o crescimento da sua personagem central, ao mesmo tempo que tacitamente delineia um pensamento crítico da instabilidade gerada pela guerra. Se por um lado Sergeyich inicialmente se distancia das questões políticas, cedo as incorpora como mote na orientação das suas acções. À medida que o enredo avança, constrói-se um panorama geral da situação que, sem cair em qualquer favorecimento, oferece os factos tal como eles são. É o suficiente para que Sergeyich e, por consequência, o leitor concluam sem quaisquer dúvidas que o mais importante de uma nação não é medido em território ou poderio militar, mas sim na resiliência do carácter das suas pessoas singulares face às adversidades.

Abelhas cinzentas bebe da beleza da simplicidade da vida, integrando-a harmoniosamente num cenário de atrocidade destruidora. Num relato delicado, porém assertivo, a mágoa é superada pela esperança com uma mensagem forte de um autor que, na primeira pessoa, veicula a catarse límpida de pertença. Afinal, tal como as abelhas, as pessoas sempre acabam por encontrar o lugar que lhes está destinado. 

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